Até que a Vida os Separe
Foi numa manhã de sol com vento gelado, daquelas que fazem a gente se sentir um pouco no hemisfério norte.
Sentada no banco do passageiro, ela falava, sem parar, banalidades cotidianas. Contava o que pretendia fazer de almoço, os problemas do meu irmão no trabalho, o preço absurdo que pagou de telefone no último mês.
Chegamos em frente ao cartório e lá estava ele, muito pálido e levemente encolhido pelo frio. De longe, notei os sulcos cada dia mais profundos em seu rosto.
Ela saltou e, enquanto eu manobrava, os observei pelo retrovisor. Cumprimentaram-se com um beijo rápido, sem se encararem. Ele lhe segurou o braço.
Entraram no cartório e sumiram do meu campo de visão.
Não demorou mais de 20 minutos para que saíssem. Tempo suficiente para que o filme daquele casamento – pelo menos as cenas às quais fui testemunha – se projetassem no pára-brisa à minha frente.
Do outro lado da calçada, meu pai acenou. Minha mãe entrou no carro. Dessa vez, calada.
Dei partida no motor, e foi assim, depois de 30 anos, que meus pais finalmente descasaram.
Labels: nostalgia, relacionamentos
5 Comments:
Ai M. ...
Este conto tocou fundo. Muito triste.
O legal é que até a última linha parece que é apenas uma história cotidiana, sem grandes emoções.
Vc surpreende o leitor com este desfecho. Este último parágrafo é muito intenso e dá sentido a todo o resto. Adorei.
A historia ficou com tom triste, mas descasar tambem significa recomeco. Vida nova, livre de amarras e velhos rancos (com cedilha).
Ficou lindo, anyway. Eu adoro o tom melancolico das suas historias. Quero ler um livro seu, soon.
Meus pais assinaram o divórcio depois de 25 anos de casados, extamente, no mesmo dia e no mesmo horário. Me ligaram rindo para contar a coincidência...
amiga, eu já vivi essa situação, mas não no banco do passageiro. E no meu caso não teve nem a cordialidade do beijo rápido... Como diz a Andréa acima, é sinal de recomeço. É verdade. Mas não tem como não ser triste, mesmo que seja para o bem de todos os envolvidos.
Impossível não se emocionar. E no meu caso, impossível também não ler o texto uma segunda vez, revendo as cenas de parte destes 30 anos.
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